Um livro de poemas de Maria Abadia Silva.
Prefácio Cláudio Willer, orelha, Olga Savary, ilustrações Siron Franco.
Ed Massao Ohno, São Paulo 1987 – Prêmio Bolsa de Publicações José Décio Filho do Governo do Estado de Goiás.
Prêmio Revelação Nacional de poesia, Fundação Banco do Brasil -1988, São Paulo
Prefácio
Orelha
Prefácio
De Claudio Willer
Cabeça/cauda, este novo livro de Maria Abadia Silva, é uma obra fascinante, instigante, apresentando um texto da mais alta qualidade. Pode-se desde já atribuir-lhe o título de um dos melhores lançamentos de poesia dos anos 80. Certamente, a autora terá reconhecidas suas e ocupará o lugar que merece entre as expoentes do que se poderia considerar uma poesia “feminina”no Brasil.
Á propósito vale a pena lembrar o quanto essa poesia feminina, entendida como uma presença marcante e efetiva de mulheres no cenário literário brasilerio, é um fenômeno recente, de algumas décadas, apenas, pra cá. E está claro, hoje em dia, que não há uniformidade nessa produção, refratária a generalizações e classificações redutoras. Algumas tematizam explicitamente a condição feminina ou o cotidiano da mulher; outras não o fazem. No aspecto formal, coexiste toda a gama de propostas e tendências possíveis. Ocorre que a poesia feminina interessa, justamente, como pluralidade, afirmação da diferença e, por isso, algo diverso da massificação e da visão estereotipada e preconcebida da mulher na sociedade machista e patriarcal.
Além de cronologicamente recente, a poesia feminina é, na voz de suas melhores representantes, um fenômeno moderno. Mesmo autoras que escolhem dicções e soluções formais mais tradicionais e até arcaizantes (o que não vem a ser o caso de Maria Abadia), frequentemente refletem a modernidade, criticamente, incorporando a seu texto gestos de ousadia, ruptura e negação da ordem estabelecida. E esta reflexão sobre a modernidade não só está presente no texto de Maria Abadia como também se constitui em uma das suas características marcantes e diferenciadoras. Ela nos fala de contrastes entre o antigo e o novo, o moderno e o tradicional, o fixo e o transitório, o permanente e o móvel. Refere-se, por exemplo, a uma “fada”, personagem da tradição, que, no entanto “bebe monóxido de carbono”, e isso “na esquina da Avenida Paulista com a Pamplona”em São Paulo.
Sua visão da contemporaneidade e da modernidade tem qualquer coisa de apocalíptico, a ponto de ela proclamar que “esta nave se autodestruirá um dia” e que “o blackout cósmico se enuncia”. Profética diz que “seremos radioativos”e “atingiremos o mesmo estágio do vírus”. Isso, como aspectos de uma perda, de uma transitoriedade de tudo no fluxo acelerado dos acontecimentos, pela qual “hoje é fora do alcance e amanhã longe demais”.
Mas, se a perspectiva apocalíptica não se reduz a um canto de derrota, a um pessimismo que, no limite, equivaleria a pregar o imobilismo. Sua lucidez extrema com relação ao aqui e agora não a leva a desconhecer a vida, pulsante nela e fluindo ao seu redor. Por isso, é capaz de afirmar que “o país da vida é navegar”já que a própria condição humana é transitoriedade e movimento: “este é o ser humano, uma viagem”.
O movimento em sua poesia é resultado de uma tensão entre pares opostos, entidades antitéticas que, coexistindo no poema, produzem imagens luminosas, de rara beleza. A obra de Maria Abadia nos oferece, sob este aspecto, uma verdadeira poética do contraste: “só escurece onde a luz brilha”. Essa característica é reflexo de contrastes vividos e poeticamente sublimados; por exemplo, o confronto do rural/tradicional e do moderno/metropolitano, que a leva a afirmar, na mesma sequência, que “sou urbana agora”e que “vim das nascentes”. Isso não corresponde, todavia, a um maniqueísmo, a um mero exorcismo da modernidade e da vida metropolitana, reconhecida como entidade histórica e portanto, mutável, e como território poético, onde a poesia se faz e é vivida: “nos confundimos ao cimento (...) território de ar”. O rural idílico e fonte do imaginário é a memória: “ainda seguro/a flor do campo/que recebi ao sol/ vestígio e farol/alucinação que retenho/iluminando o dia”.
Autora de metáforas espaciais, e até de reflexões, inseridas em seu tema, sobre a poética do espaço, como “o espaço devorou a metáfora/na indizível rotina de seu enigma”. Maria Abadia nos traz, nesse Cabeça/cauda, muito do que falta à grande parte da poesia contemporânea feita no Brasil. Acima de tudo, uma elaboração do texto que nada tem de rebuscado e muito menos de uma pesquisa formal puramente cerebral. Seu compromisso primeiro é com a vida. Por isso, a poesia, antes de realizar-se como texto, é uma experiência interior, um assumir a subjetividade: “o texto que está dentro das pessoas e/ que não sai”. Esta autenticidade da vivência interior permite a ela proclamar que “este é meu poema - /Deita-se comigo porque é livre/ e não me teme”.
Cláudio Willer.
Orelha
Está ai Mario Quintana que não me deixa mentir quando diz que um bom poema é aquele a nos dar a impressão de que está lendo a gente,,, e não a gente a ele.
Haveria assim melhor antídoto para a solidão? E o que de mais estimulante senão a poesia, essa que é a tradutora/não traidora dos sentimentos e emoções daqueles que não escrevem?
“O que sou é isso que passa
Na liturgia de hábitos
E tanto se repete
Que se mistura às mudanças que faço”
CABEÇA/CAUDA – segundo livro da goiana Maria Abadia Silva, mulher, espíritocorpo, racionalidade/magia, corporeidade/transcendência – é feito dessa rede de sedução. Estes elementos magiciadores, opostos, que se acoplam no título, que se complementam, mas sem jamais se misturar, como água e óleo, em papéis não tão bem determinados e físicos, tão ao jeito da poesia, em sua natureza de dubiedade, embora geradora de alegria e segurança, partiram do individual para o coletivo.
Corpo de espuma e nenhuma espera, tarde caindo nos olhos como se fosse o mundo, acrobata de sonhos, como segundo deserto no deserto, palavra dentro da palavra, CABEÇA/CAUDA, exercício da magia, ganhou prêmio de Poesia Bolsa de Publicações José Décio Filho, do Cerne e UBE/GO.
‘Sua alma está de férias.
Toquei seu rosto e não via.
Toquei o rosto de sua mitologia moderna
-cabeça, tronco e membro
O pó cobriu sua Double face
Um menino ejaculou na minha mão, era sangue.
Uma flor úmida e ácida
Se ergueu sozinha
Eu pensei que estava triste
Mas compreendi.”
Maria Abadia Silva tem um olho que vê, um olhar anterior ao cérebro. (Como os contempladores da natureza, desde o Renascimento, com Dante e Da Vinci, que ver é pensar e pensar é ver), é de certa natureza pictórica a sua poesia.
Poesia feita de imagens, como se ela pintasse como o olhar que vê e o cérebro emocionado que pensa, pois afinal, no dizer de Leonardo, “arte é coisa mental”.
“Este é meu poema.
Deita-se comigo porque é livre
E não me teme”.
O belo espírito de Maria Abadia Silva sabiamente não nega o corpo, antes pelo contrário são fraternas ambas as relações de sutil sensualidade. Da autora poderiam ser essas palavras de Quintana: “Não pretendo que a poesia seja um antídoto para a teconologia atual mas sim um alivio. Como quem se livra de vez em quando de um sapato apertado e passeia descalço sobre a relva, ficando assim mais próximo da natureza, mais por dentro da vida. Porque as máquinas um dia viram sucata, A poesia, nunca.”
Olga Savary RJ setembro de 1987.
Não precisava esse massacre ao meio dia.
O vermelho correndo dos seus olhos pela mesa,
A toalha se escondendo.
Sem pudor a mandrágora se ergueu do seu colo,
Seu discurso saiu como veio.
Mordi sua cabeça/não tinha ninguém.
Pedras fizeram canteiro nos seus cabelos.
Quero promiscuir seu horário
Penetrar sua cabeça com dardos
Ser sua testemunha
Como um segundo deserto no deserto
Arrombar sua comporta existencial.
Novos ídolos serão erigidos
Sob os olhos da noite
Os auspícios da vanguarda.
Às 11horas
Quando a chuva entrava pela janela
Arrepiando as plantas da sala
Bach mostrou o texto
Inscrito nas paredes e nas portas
Pelos corredores,
O texto que está dentro das pessoas e que não sai.
Eu me demorava no seu olhar
Pra não esquecer
A direção das pedras
As curvas da hera
As promessas da estação.
Eu me demorava no seu caminho
Não como quem visita
Mas acaba de chegar.
Um portulano avariado
Sem possibilidade de rota
Nos impedia de encontrar.
No meio desse dia
Esparramado de luz
Que o planalto é pleno de claridade
A cal brota da terra
E os anseios se levantam.
É o que descende,
As farpas duras
Do que transpõe e parte.
As cigarras zunindo entre as abelhas
Começo de primavera
De novo as alfaces, as begônias
Os canteiros de couve.
Entranhas da terra
A superfície é ampla
E estamos nos seus veios
Sua fundura dolorosa.
Catre para o repouso do dia
Nosso escurecido dia
Que não suportamos
A existência do amor
Que nos reparte.
Tardio medievais apelo Eco
Onde semeamos
Semi-próximos, partidos
A resposta?
Seja ameno
Diga o nome redescoberto
O nome dos homens
Nesse deserto.
Toma-me a mim
Que sou vento
Irreconhecível o meu nome
Entre abismos, moinhos
Toma-me assim
Que vento também é caminho.
Recorda-me rio
Sobre seu corpo/leito
Entre suor e gozo, aragem
Aberta e viva
No seu corpo Iaco
Rio de enchentes
Onde as pedras não se formam
E é de barro
A correnteza de larvas
O caminho das acácias
O silêncio das aves
O relento.
Eu vi a tarde caindo
Dentro dos seus olhos
Como se fosse o mundo.
Estendo toda manhã meu varal de estrelas e saio.
É noite no Japão, se lembra Siron?
É tudo acabado/o mundo se plastificou do outro lado.
Não tem saída, o corpo não vaza.
Não quero paredes, eu disse a você,
Mallarmé me desfolha.
Na Avenida Paulista com a Pamplona existe uma fada/
Ela bebe monóxido de carbono.
Vampiros acariciam nossa jugular/está perto/
Estamos quase frios.
Esta nave se autodestruirá um dia.
O Black out cósmico se enuncia –
Só escurece onde a luz brilha.
Sejamos radioativos
Saídas astrológicas prenunciam
O antigeral canto da multidão
Atingiremos o mesmo estágio do vírus
O inimigo se deitará na mesma cama/e também o amigo/
Todo obscuro/mesmo no muro/será visível.
Sua alma está de férias.
Toquei seu rosto e não via.
Toquei o rosto de sua mitologia moderna
Cabeça, tronco e membro.
O pó cobriu sua Double face
Um menino ejaculou na minha mão/era sangue.
Uma flor úmida e ácida se ergueu sozinha.
Eu pensei que estava triste
Mas compreendi.
Dante nos levou aos cantos do paraíso
Beatrizes passeiam nos bares
Cobertas de purpurinas e
Pulseiras nos pés.
Todos bebemos do mesmo tonel
Secreções que jorram borbulhando nos copos
A poção revitalizante da química humana.
Você também ouvia Beatles aos 16 anos
Eu quero Dançar
I want to hold your hand
E chorar de nostalgia
Porque hoje é fora do alcance
Sinto o gosto de atum na sua boca.
As meninas jogam gamão no quarto ao lado.
Eu enterro na piscina
Minhas lentes de contato
E ninguém vê nada.
No Moinho comemos as nossas costeletas,
Nossos pés, vísceras numa feijoada.
Nós nos olhamos e
Sabemos que por trás de nós
Existe uma avenida
Uma escada, um ônibus no horário
E não dizemos nada
Fingimos que não sabemos
Porque não sabemos nada
Somente o prédio alto do ministério é real.
Seu uísque não existe
Nem mesmo sua ilusão de livre-arbítrio.
Me lembro seu riso
Mais alto
Que o salto do meu coração
No bolso da sua calça.
Eu atravessava a Ponte Vecchio
Quando avistei David que falava com Miguel Ângelo
Pequena alma terna flutuante
No túmulo de Adriano
Eu disse veja
Mas você faltou ao nosso encontro
E eu comi sozinha o pão e o engano.
Tomando sol na área infinita de dois metros do meu quarto
Vi no céu
Uma estrela diluída com seus traços/
Meu amor, você é um andróide de nuvens
Que passa.
...estamos divididos entre nós mesmos.
De argila nos tecemos, os vários
Precários das chamas que ascendemos.
Nos confundimos ao cimento, presas vivas
Ao pé do dia nos revendo
Ávidos de pessoas e espaços
Estendemos esse território de ar.
Do carro vejo a cidade passar
Rápido eldorado dentro dos olhos
Insaciável colecionismo
De janelas, ruas
Portas e estrelas
More and more
Braços e pernas
Misturados às cadeiras
São bares ao invés de praças
Corpos aos pósteros
As mãos nos olhos
Os olhos nas outras mesas
A cidade passando em nossos óculos espelhados
De tantas faces
A cidade crescendo nossa busca
Outro cometa passa.
Seu rosto parte
É sempre tarde
É pra sempre nunca
Mesmo que a lua caia vermelha
No seu desejo
E grave na minha pele
O seu gosto.
Estamos tão expostos
Nessa fragilidade visceral
A inocência acabou.
Às duas horas da manhã
Saias de seda
Esvoaçam pelas ruas
Acordando o vento que
Insuspeito
Beija as popas das árvores
Sem despertar ninguém.
Termina a racionalidade.
Os tabus, os mitos
Nossa cristianização.
Estamos trocando tudo
Nesse silêncio inconfesso.
Às 11 horas
Quando a chuva entrava
Pela janela
Arrepiando as plantas da sala
Bach mostrou o texto
Inscrito nas paredes
E nas portas
Pelos corredores –
O texto que está dentro das pessoas e que não sai.
Segura a luz aberta em larvas
A queimar a escuridão dos rebentos
Os recém-nascidos
Espaços da alma
Marcados no rosto
Dividindo
O único instante
Da nudez rápida
Nos cantos dos seus olhos
Feitos de horizontes
Postas palavras
A sua lavra de vento
Fixando nas coisas
Sua passagem
Lívida sua pressa
Inscrita no hálito
Renovado da infância
Sem pudor, em grunhidos
A euforia da sua pele
Florindo
Horda de risos
O sol no seu peito
Revelando o menino
Sem sombras.
Caminhar sob as árvores da manhã
O sol recreia seus olhos
Sem sombras.
É estação da vida
É seu rosto
Penso às estrelas do cerrado
Da terra se dissolvendo nos seus poros/
Sonhos de argila –
Levanta a voz para os homens e respira.
Sinto sua vertigem de gomos e sucos
Descobrindo-me outra vida
Sua filha, uma rainha egípcia
Feridas implícitas
Já se tinha ido.
Um percurso de noites no olhar
Pêndulo obscuro que se move
Também como quem busca
Apenas seguir
Seus ombros de asas
Batismo de nódoas na minha carne.
Horas das nossas marcas
A mão suave que toca
Ela mesma mata.
Recaminhei as sombras dos objetos
E não me dizem nada
Onde a vida se escondeu?
Bate-me o vento no rosto
E torno de novo a face\ao leito do rio
Essas raízes se formando nas estradas.
Este é o ser humano
Uma viagem
Às vezes indo, outras voltando
Há um princípio antes de tudo
Que nada é por acaso.
Vim das nascentes
Com a fome e a sede das ninfas e
Sem lugar
Onde estirar em leito
Deitar meus olhos
Para o encontro
Que a distância
Não se retrai
Apenas o mastro
No tempo
Construindo a legião de emblemas
Nas nossas faces.
O que me estabelece?
Sua medalha de astronauta
Bússola perdida nos olhos
O mesmo mar
A mesma manhã nos desperta.
Saúdo sua beleza
Se erguendo das minhas mãos
A leveza das algas vivas
Penetrando na minha boca, sacro sólio
À contemplação secular
Da viril malicia
Estampa aquosa da sua dor
No meu corpo
De sua força
No meu desejo
O exato encontro dessa nudez.
Sou a sua outra face
A mão que se estende e abraça
A luz caída ao fim da tarde
A claridade aberta do dia.
Em meu rosto se espelha
Alguma espera
Não distingo as ruas vazias
Que o tempo é único no meu peito
E cheio de gerações.
Eu me demorava
No seu olhar
Pra não esquecer
A direção das pedras
As curvas da hera
As promessas da estação.
Eu me demorava no seu caminho
Não como quem visita
Mas acaba de chegar.
Um portulano avariado
Sem possibilidade de rota
Nos impedia de encontrar.
À minha frente e
À minha volta e
Atrás de mim
Os seus pés
Nos corredores
No meu silêncio
Meu estômago
Feito úlcera
Me prendendo
Sem intenção só por prender
A respiração, a voz
O corpo inteiro
Numa prisão.
Preciso a busca
Das estrelas diurnas
Saber dos rios
A palavra, meu elemento
Onde a extensão da carne?
O país da vida é navegar.
Apenas faculte-me o tempo
Percorrer descalça
A planície e o morro
E a montanha e
Ventos
Possa transportar o peso do mundo
Possa eu
Acrobata de sonhos
Transportar.
Cardumes e enxames
Festejarão as exéquias da tempestade
Cinza sobre cinza se erguerá a cidade.
No meio desse dia
Esparramado de luz
Que o planalto é pleno de claridade
A cal brota da terra
E os anseios se levantam
É o que descende
As farpas duras
Do que transpõe e parte.
As cigarras zunindo entre as abelhas
Começo de primavera
De novo as alfaces, as begônias
Os canteiros de couve.
Entranhas da terra
A superfície é ampla
E estamos nos seus veios
Sua fundura dolorosa
Catre para o repouso do dia
Nosso escurecido dia
Que não suportamos
A existência do amor
Que nos reparte.
Tardios medievais
Apelo eco
Onde semeamos
Semi-próximos, partidos
A resposta?
Seja ameno
Diga o nome redescoberto
O nome do homem
Neste deserto.
Fecho meus olhos
Pra lhe entregar
As suas catedrais
O parlamento
O tribunal
Sua arena diária
Sua contenda
Que sou ave apenas
Talvez anêmona.
Passarei no crepúsculo
Sob olhares, avisos
Passarei entre as águas
Selo íncubo
Invisível registro
Passarei.
Estou ao lado de mim
Jaz ao meu lado
Posto de lado um outro lado
Mesmo assim
Ainda parte
Esta parte que empurra
Um lado fica
E outro re-parte.
O que sou é isto que passa
Na liturgia de hábitos
E tanto se repete
Que se mistura
Às mudanças que faço.
Nessa hora nasci.
Já o espanto e alegria
Repousavam nas vésperas
O que me retinha era agora
Ausência
Recaminhar a procissão dos ventos
Fazer da trilha
Um infindável séquito.
Esta a invenção dos incertos
Transformar os enganos
Em ventura em descoberta.
O céu era azul do lado de fora
Se futuro é hoje
Não vivo aqui
E agora?
A morte é hai-kai\sintética.
Todo dia a mesma tensão
A retensão
A corda se esticando
No ar, em vão.
Segura minha mão Walt Whitman
A boca se escancara
Engolindo a minha hora
É meio dia.
Pensei uma lucidez de morte
E Mishima, o poeta
Queria me abrir a porta
Me levar a passear entre espadas
Fazendo kendô.
Tento organizar:
O que não tem começo Fim não terá?
O rio vazio se abre
Formando a cratera.
Antígona
Deita-se no divã do analista/
Meu problema é com a realidade
Morte é coisa da vida.
Este é meu poema
Deita-se comigo porque é livre
E não me teme.
Como uma estrela de metal
As suas idéias liberais
Em epicenos, comum de dois
Um a menos
Cada vez menos
O sujeito coletivo
Invadiu seu baobá
No concílio epidérmico
Das nossas consciências –
Foi criado um novo centro.
O espaço devorou a metáfora
Na indizível rotina do seu enigma
Em alabastro
Pétreo seu rosto
Que se transforma
Sem nenhuma noticia
Sem embargo
Sem embaraço.
Sua imagem cresce e
Minha mão não alcança
O ciclope gigante
Brincando na minha casa de vidro.
Estão nos olhando da calçada
E vamos passando
Feito uma paisagem de verduras
Nossos apetites em pratos.
Pensamento jeans
Em cada esquina
Os mesmos rostos
Com as suas bocas
Hálitos de hortelã
Todos absorvidos em delavée
Nossos jeans
Azuis nossos cabelos
As estrelas despedaçadas
Nos brilhos artificiais
Dos holofotes ensurdecedores
Nosso amor pop
Tão alegre numa pista de rock.
Nos seus óculos super escuros
Pousei
As minhas defesas
As resistências, as incertezas.
Só você não via
Tão acostumado
Aos grandes espaços
Ao que erige
Rasga e passa.
Seus óculos escuros
Como um elmo
Cobrindo sua cabeça
Tornando-me oculta
Sem minhas roupas
Amigos de infância
Meu diploma de bacharel.
Às vezes penso
Que você se diverte
Prisioneiro de si mesmo
Dentro da solidão que criou e
Traz zeloso
No seu fôlego arbitrário
Na imunidade
Da sua redoma de títulos
Cifrões e números.
Impossível marcar um encontro
O mundo está tomando conta de você
Pedindo bis.
Seus telefones em comunicação
E as palavras ocultas
Inanimadas
Nas suas mãos
Que não se movem.
Apenas fumaça
O seu riso
Apenas fumaça
O seu beijo de chocolate.
Que estou entrando
E você nunca está
Porque foi buscar o tesouro
No mar
E nem segurou a minha mão
Fria e que suava
Na maçaneta da porta..
Tudo em trânsito.
Engarrafado o seu ar
O seu perfume
A sua roupa com monograma do lado de fora
Do seu corpo
Incorpóreo
Impalpável/fogo fátuo.
E está no código
Adulterado
Não há verdade
Que ela está mudando
E eu
Assistindo tudo
Da minha poltrona.
Hóspede
Da minha jornada
Aceno efêmero e vago
No meu aquário
O tempo pesa
Em nossos atos
O que foi morto
Continua conosco:
Nosso fardo
Nossa roupa
Nosso cargo.
O meu coração é kitsch.
Você escolheu o fundo
Eu vou pro mundo.
Mais do que a paixão –
O seu motivo
A necessidade da sua invenção.
Passargada é um corredor aéreo
Inviolável
Preso de luzes e
Paredes de asas.
Passargada
Tem horário imprevisível
Ilimitado
É um tempo sentido
Que nele não vive
Nem acaba.
Assim toquei seu rosto
Verbena colhida do orvalho
Seu pulso
Batendo no meu peito
A sua mão penetrando minha carne.
O sol de maio
Estampava de risos nossos olhares.
Toma-me a mim
Que sou vento
Irreconhecível o meu nome
Entre abismos, moinhos.
Toma-me assim
Que vento
Também é caminho.
Recorda-me rio
Sobre seu corpo/leito
Entre suor e gozo
Aragem
Aberta e viva
No seu corpo Iaco
Rio de enchentes
Onde as pedras não se formam
E é de barro
A correnteza de larvas
O caminho das acácias
O silêncio das aves
O relento.
Eu vi a tarde caindo
Dentro dos seus olhos
Como se fosse o mundo.
Acordei com fios dos seus cabelos
Entre meus dentes
Eram de flores seus olhares
Pela fresta da janela
No meu carro
Uma incrustação de ácido
Confundia as marchas
Dividindo os caminhos.
As paralelas irreverentes
Se encontram em marte
Em domingos nublados
Nas estações boreais.
Trazemos uma flor
Clandestina e sem rumo.
Ao vento nossa mágoa.
Ao vento a ternura sem estio
A palavra que se encerra
Noutra palavra.
Novas manhãs para o sol.
Para o sol
Nosso corpo de espuma
E espera nenhuma.
Você ria sob as folhas
De uma árvores opulenta
Cingido e purificado
Do sol e das águas
Entre as frutas
As primícias de dezembro
Seu corpo cansado se entregava
À longa viagem desse caminho
Eu descobria sua pele de magnólia no lençol
E arrancava do seu peito
O pássaro em exílio.
Inesperada eteriza-me
E eu lhe ofereci outro corpo/beba.
O antídoto da solidão
Se escarna sobre a cama.
Em sua homenagem
Uma borboleta brincava nos meus olhos
Você não sabia
Da agitação de asas
Desse momento raro
De transformação das crisálidas.
Se for tarde
Coloco um cravo na sua/minha mão
E beijo seu braço
E cabelos
A estrela pousada no seu peito.
Preciso achar a palavra
Entro
Entre meias portas
Entremeios
Sem ser anunciada
Nas sobras insondáveis
Da minha/sua vida
Que nos acumulou desses vazios.
Seguro suas mãos enormes
E seus braços
Que crescem envolvendo
Meu sangue
Meu vestido
O bloco de papel com meus poemas.
Sua pulseira de prata
Na minha boca
Brilhando o meu coração.
O licor de amêndoas
Toma seu coração de touro
Que avança
Sobre minhas partes descobertas
Como postas de um poema
A fome do seu corpo, o seu olhar de festa.
Existe ainda outra parte
Que não essa
Existe ainda outra parte
Secreta.
Real é ouvir Tom Jobim
Passarinhando o coração da gente
E voltar
Para o vento e a luz do dia
Inesgotável rever de auroras
Noutros olhos
E outro cenário
De tinta e fogo
Queimando nosso diário.
Estendo toda manhã
Meu varal de estrelas e saio.
Alguma alavanca de sangue
Corta a minha carne
E me levanta.
1986 -