quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Cabeça Cauda


Um livro de poemas de Maria Abadia Silva.
Prefácio Cláudio Willer, orelha, Olga Savary, ilustrações Siron Franco.
Ed Massao Ohno, São Paulo 1987 – Prêmio Bolsa de Publicações José Décio Filho do Governo do Estado de Goiás.
Prêmio Revelação Nacional de poesia, Fundação Banco do Brasil -1988, São Paulo

 Prefácio


De Claudio Willer
Cabeça/cauda, este novo livro de Maria Abadia Silva, é uma obra fascinante, instigante, apresentando um texto  da mais alta qualidade. Pode-se desde já atribuir-lhe o título de um dos melhores lançamentos de poesia dos anos 80. Certamente, a autora terá reconhecidas suas  e ocupará o lugar que merece entre as expoentes do que se poderia considerar uma poesia “feminina”no Brasil.
Á propósito vale a pena lembrar o quanto essa poesia feminina, entendida como uma presença marcante e efetiva de mulheres no cenário literário brasilerio, é um fenômeno recente, de algumas décadas, apenas, pra cá. E está claro, hoje em dia, que não há uniformidade nessa produção, refratária a generalizações e classificações redutoras.  Algumas tematizam explicitamente a condição feminina ou o cotidiano da mulher; outras não o fazem. No aspecto formal, coexiste toda a gama de propostas e tendências possíveis. Ocorre que a poesia feminina interessa, justamente, como pluralidade, afirmação da diferença e, por isso, algo diverso da massificação e da visão estereotipada e preconcebida da mulher na sociedade machista e patriarcal.
Além de cronologicamente recente, a poesia feminina é, na voz de suas melhores representantes, um fenômeno moderno. Mesmo autoras que escolhem dicções e soluções formais mais tradicionais e até arcaizantes (o que não vem a ser o caso de Maria Abadia), frequentemente refletem a modernidade, criticamente, incorporando a seu texto gestos de ousadia, ruptura e negação da ordem estabelecida. E esta reflexão sobre a modernidade não só está presente no texto de Maria Abadia como também se constitui em uma das suas características marcantes e diferenciadoras. Ela nos fala de contrastes entre o antigo e o novo, o moderno e o tradicional, o fixo e o transitório, o permanente e o móvel. Refere-se, por exemplo, a uma “fada”, personagem da tradição, que, no entanto “bebe monóxido de carbono”, e isso “na esquina da Avenida Paulista com a Pamplona”em São Paulo.
Sua visão da contemporaneidade e da modernidade tem qualquer coisa de apocalíptico, a ponto de ela proclamar que “esta nave se autodestruirá um dia” e que “o blackout cósmico se enuncia”.  Profética diz que  “seremos radioativos”e “atingiremos o mesmo estágio do vírus”. Isso, como aspectos de uma perda, de uma transitoriedade de tudo no fluxo acelerado dos acontecimentos, pela qual “hoje é fora do alcance e amanhã longe demais”.
Mas, se a perspectiva apocalíptica não se reduz a um canto de derrota, a um pessimismo que, no limite, equivaleria a pregar o imobilismo. Sua lucidez  extrema com relação ao aqui e agora não a leva a desconhecer a vida, pulsante nela e fluindo ao seu redor. Por isso, é capaz de afirmar que “o país da vida é navegar”já que a própria condição humana é transitoriedade e movimento: “este é o ser humano, uma viagem”.
O movimento em sua poesia é resultado de uma tensão entre pares opostos, entidades antitéticas que, coexistindo no poema, produzem imagens luminosas, de rara beleza. A obra de Maria Abadia nos oferece, sob este aspecto, uma verdadeira poética do contraste: “só escurece onde a luz brilha”. Essa característica é reflexo de contrastes vividos e poeticamente sublimados; por exemplo, o confronto do rural/tradicional e do moderno/metropolitano, que a leva a afirmar, na mesma sequência, que “sou urbana agora”e que “vim das nascentes”.  Isso não corresponde, todavia, a um maniqueísmo, a um mero exorcismo da modernidade e da vida metropolitana, reconhecida como entidade histórica e portanto, mutável, e como território poético, onde a poesia se faz e é vivida: “nos confundimos ao cimento (...) território de ar”. O rural idílico e fonte do imaginário é a memória: “ainda seguro/a flor do campo/que recebi ao sol/ vestígio e farol/alucinação que retenho/iluminando o dia”.
Autora de metáforas espaciais, e até de reflexões, inseridas em seu tema, sobre a poética do espaço, como “o espaço devorou a metáfora/na indizível rotina de seu enigma”.  Maria Abadia nos traz, nesse Cabeça/cauda, muito do que falta à grande parte da poesia contemporânea feita no Brasil. Acima de tudo, uma elaboração do texto que nada tem de rebuscado e muito menos de uma pesquisa formal  puramente cerebral. Seu compromisso primeiro é com a vida. Por isso, a poesia, antes de realizar-se como texto, é uma experiência interior, um assumir a subjetividade: “o texto que está dentro das pessoas e/ que não sai”. Esta autenticidade da vivência interior permite a ela proclamar que “este é meu poema - /Deita-se comigo porque é livre/ e não me teme”.
Cláudio Willer.


 Orelha




Está ai Mario Quintana que não me deixa mentir quando diz que um bom poema é aquele a nos dar a impressão de que está lendo a gente,,, e não a gente a ele.
Haveria assim melhor antídoto para a solidão? E o que de mais estimulante senão a poesia, essa que é a tradutora/não traidora dos sentimentos e emoções daqueles que não escrevem?

“O  que sou é isso que passa
Na liturgia de hábitos
E tanto se repete
Que se mistura às mudanças que faço”

CABEÇA/CAUDA – segundo livro da goiana Maria Abadia Silva, mulher, espíritocorpo, racionalidade/magia, corporeidade/transcendência – é feito dessa rede de sedução. Estes elementos magiciadores, opostos, que se acoplam no título, que se complementam, mas sem jamais se misturar, como  água e óleo, em papéis não tão bem determinados e físicos, tão ao jeito da poesia, em sua natureza de dubiedade, embora geradora de alegria e segurança, partiram do individual para o coletivo.
Corpo de espuma e nenhuma espera, tarde caindo nos olhos como se fosse o mundo, acrobata de sonhos, como segundo deserto no deserto, palavra dentro da palavra, CABEÇA/CAUDA, exercício da magia, ganhou prêmio de Poesia Bolsa  de Publicações José Décio Filho, do Cerne e UBE/GO.

‘Sua alma está de férias.
Toquei seu rosto e não via.
Toquei o rosto de sua mitologia moderna
-cabeça, tronco e membro
O pó cobriu sua Double face
Um menino ejaculou na minha mão, era sangue.
Uma flor úmida e ácida
Se ergueu sozinha
Eu pensei que estava triste
Mas compreendi.”


Maria Abadia Silva tem um olho  que vê, um olhar anterior ao cérebro. (Como os contempladores da natureza, desde o Renascimento, com Dante e Da Vinci, que ver é pensar e pensar é ver),  é de certa natureza pictórica a sua poesia.
Poesia feita de imagens, como se ela pintasse como o olhar que vê e o cérebro emocionado que pensa, pois afinal, no dizer de Leonardo, “arte é coisa mental”.

“Este é meu poema.
Deita-se comigo porque é livre
E não me teme”.

O belo espírito de Maria Abadia Silva sabiamente não nega o corpo, antes pelo contrário são fraternas ambas as relações de sutil sensualidade. Da autora poderiam ser essas palavras de Quintana: “Não pretendo que a poesia seja um antídoto para a teconologia atual mas sim um alivio. Como quem se livra de vez em quando de um sapato apertado e passeia descalço sobre a relva, ficando assim mais próximo da natureza, mais por dentro da vida. Porque as máquinas um dia viram sucata, A poesia, nunca.”


Olga Savary RJ setembro de 1987.



Não precisava esse massacre ao meio dia.
O vermelho correndo dos seus olhos pela mesa,
A toalha se escondendo.
Sem pudor a mandrágora se ergueu do seu colo,
Seu discurso saiu como veio.
Mordi sua cabeça/não tinha ninguém.
Pedras fizeram canteiro nos seus cabelos.


Quero promiscuir seu horário
Penetrar sua cabeça com dardos
Ser sua testemunha
Como um segundo deserto no deserto
Arrombar sua comporta existencial.
Novos ídolos serão erigidos
Sob os olhos da noite
Os auspícios da vanguarda.



Às 11horas
Quando a chuva entrava pela janela
Arrepiando as plantas da sala
Bach mostrou o texto
Inscrito nas paredes e nas portas
Pelos corredores,
O texto que está dentro das pessoas e que não sai.


Eu me demorava no seu olhar
Pra não esquecer
A direção das pedras
As curvas da hera
As promessas da estação.
Eu me demorava no seu caminho
Não como quem visita
Mas acaba de chegar.
Um portulano avariado
Sem possibilidade de rota
Nos impedia de encontrar.



No meio desse dia
Esparramado de luz
Que o planalto é pleno de claridade
A cal brota da terra
E os anseios se levantam.
É o que descende,
As farpas duras
Do que transpõe e parte.
As cigarras zunindo entre as abelhas
Começo de primavera
De novo as alfaces, as begônias
Os canteiros de couve.
Entranhas da terra
A superfície é ampla
E estamos nos seus veios
Sua fundura dolorosa.
Catre para o repouso do dia
Nosso escurecido dia
Que não suportamos
A existência do amor
Que nos reparte.
Tardio medievais apelo Eco
Onde semeamos
Semi-próximos, partidos
A resposta?
Seja ameno
Diga o nome redescoberto
O nome dos homens
Nesse deserto.


Toma-me a mim
Que sou vento
Irreconhecível  o meu nome
Entre abismos, moinhos
Toma-me assim
Que vento também é caminho.

Recorda-me rio
Sobre seu corpo/leito
Entre suor e gozo, aragem
Aberta e viva
No seu corpo Iaco
Rio de enchentes
Onde as pedras não se formam
E é de barro
A correnteza de larvas
O caminho das acácias
O silêncio das aves
O relento.
Eu vi a tarde caindo
Dentro dos seus olhos
Como se fosse o mundo.
  
Estendo toda manhã meu varal de estrelas e saio.


É noite no Japão, se lembra Siron?
É tudo acabado/o mundo se plastificou do outro lado.
Não tem saída, o corpo não vaza.
Não quero paredes, eu disse a você,
Mallarmé me desfolha.
Na Avenida Paulista com a Pamplona existe uma fada/
Ela bebe monóxido de carbono.

Vampiros acariciam nossa jugular/está perto/
Estamos quase frios.
Esta nave se autodestruirá um dia.


O Black out cósmico se enuncia –
Só escurece onde a luz brilha.

Sejamos radioativos
Saídas astrológicas prenunciam
O antigeral canto da multidão
Atingiremos o mesmo estágio do vírus
O inimigo se deitará na mesma cama/e também o amigo/
Todo obscuro/mesmo no muro/será visível.

Sua alma está de férias.
Toquei seu rosto e não via.
Toquei o rosto de sua mitologia moderna
Cabeça, tronco e membro.
O pó cobriu sua Double face
Um menino ejaculou na minha mão/era sangue.
Uma flor úmida e ácida se ergueu sozinha.
Eu pensei que estava triste
Mas compreendi.

Dante nos levou aos cantos do paraíso
Beatrizes passeiam nos bares
Cobertas de purpurinas e
Pulseiras nos pés.
Todos bebemos do mesmo tonel
Secreções que jorram borbulhando nos copos
A poção revitalizante da química humana.

Você também ouvia Beatles aos 16 anos
Eu quero Dançar
I want to hold your hand
E chorar de nostalgia
Porque hoje é fora do alcance


Sinto o gosto de atum na sua boca.
As meninas jogam gamão no quarto ao lado.
Eu enterro na piscina
Minhas lentes de contato
E ninguém vê nada.

No Moinho comemos as nossas costeletas,
Nossos pés, vísceras numa feijoada.
Nós nos olhamos e
Sabemos que por trás de nós
Existe uma avenida
Uma escada, um ônibus no horário
E não dizemos nada
Fingimos que não sabemos
Porque não sabemos nada
Somente o prédio alto do ministério é real.
Seu uísque não existe
Nem mesmo sua ilusão de livre-arbítrio.

Me lembro seu riso
Mais alto
Que o salto do meu coração
No bolso da sua calça.

Eu atravessava a Ponte Vecchio
Quando avistei David que falava com Miguel Ângelo
Pequena alma terna flutuante
No túmulo de Adriano
Eu disse veja
Mas você faltou ao nosso encontro
E eu comi sozinha o pão e o engano.

Tomando sol na área infinita de dois metros do meu quarto
Vi no céu
Uma estrela diluída com seus traços/
Meu amor, você é um andróide de nuvens
Que passa.

Estendo toda manhã meu varal de estrelas e saio 



...estamos divididos entre nós mesmos.

De argila nos tecemos, os vários

Precários das chamas que ascendemos.



Nos confundimos ao cimento, presas vivas

Ao pé do dia nos revendo

Ávidos de pessoas e espaços

Estendemos esse território de ar.



Do carro vejo a cidade passar

Rápido eldorado dentro dos olhos

Insaciável colecionismo

De janelas, ruas

Portas e estrelas

More and more

Braços e pernas

Misturados às cadeiras

São bares ao invés de praças

Corpos aos pósteros

As mãos nos olhos

Os olhos nas outras mesas



A cidade passando em nossos óculos espelhados

De tantas faces

A cidade crescendo nossa busca

Outro cometa passa.





Seu rosto parte

É sempre tarde

É pra sempre nunca

Mesmo que a lua caia vermelha

No seu desejo

E grave na minha pele

O seu gosto.



Estamos tão expostos

Nessa fragilidade visceral

A inocência acabou.



Às duas horas da manhã

Saias de seda

Esvoaçam pelas ruas

Acordando o vento que

Insuspeito

Beija as popas das árvores

Sem despertar ninguém.

Termina a racionalidade.

Os tabus, os mitos

Nossa cristianização.

Estamos trocando tudo

Nesse silêncio inconfesso.



Às 11 horas

Quando a chuva entrava

Pela janela

Arrepiando as plantas da sala

Bach mostrou o texto

Inscrito nas paredes

E nas portas

Pelos corredores –

O texto que está dentro das pessoas e que não sai.



Segura a luz aberta em larvas

A queimar a escuridão dos rebentos

Os recém-nascidos

Espaços da alma

Marcados no rosto

Dividindo

O único instante

Da nudez rápida



Nos cantos dos seus olhos

Feitos de horizontes

Postas palavras

A sua lavra de vento

Fixando nas coisas

Sua passagem

Lívida sua pressa

Inscrita no hálito

Renovado da infância

Sem pudor, em grunhidos

A euforia da sua pele

Florindo

Horda de risos

O sol no seu peito

Revelando o menino

Sem sombras.



Caminhar sob as árvores da manhã

O sol recreia seus olhos

Sem sombras.



É estação da vida

É seu rosto

Penso às estrelas do cerrado

Da terra se dissolvendo nos seus poros/

Sonhos de argila –

Levanta a voz para os homens e respira.



Sinto sua vertigem de gomos e sucos

Descobrindo-me outra vida

Sua filha, uma rainha egípcia

Feridas implícitas

Já se tinha ido.



Um percurso de noites no olhar

Pêndulo obscuro que se move

Também como quem busca

Apenas seguir

Seus ombros de asas

Batismo de nódoas na minha carne.



Horas das nossas marcas

A mão suave que toca

Ela mesma mata.





Recaminhei as sombras dos objetos

E não me dizem nada

Onde a vida se escondeu?



Bate-me o vento no rosto

E torno de novo a face\ao leito do rio

Essas raízes se formando nas estradas.



Este é o ser humano

Uma viagem

Às vezes indo, outras voltando

Há um princípio antes de tudo

Que nada é por acaso.



Vim das nascentes

Com a fome e a sede das ninfas e

Sem lugar

Onde estirar em leito

Deitar meus olhos

Para o encontro

Que a distância

Não se retrai

Apenas o mastro

No tempo

Construindo a legião de emblemas

Nas nossas faces.



O que me estabelece?

Sua medalha de astronauta

Bússola perdida nos olhos

O mesmo mar

A mesma manhã nos desperta.



Saúdo sua beleza

Se erguendo das minhas mãos

A leveza das algas vivas

Penetrando na minha boca, sacro sólio

À contemplação secular

Da viril malicia

Estampa aquosa da sua dor

No meu corpo

De sua força

No meu desejo

O exato encontro dessa nudez.



Sou a sua outra face

A mão que se estende e abraça

A luz caída ao fim da tarde

A claridade aberta do dia.



Em meu rosto se espelha

Alguma espera

Não distingo as ruas vazias

Que o tempo é único no meu peito

E cheio de gerações.



Eu me demorava

No seu olhar

Pra não esquecer

A direção das pedras

As curvas da hera

As promessas da estação.

Eu me demorava no seu caminho

Não como quem visita

Mas acaba de chegar.

Um portulano avariado

Sem possibilidade de rota

Nos impedia de encontrar.



À minha frente e

À minha volta e

Atrás de mim

Os seus pés

Nos corredores

No meu silêncio

Meu estômago

Feito úlcera

Me prendendo

Sem intenção só por prender

A respiração, a voz

O corpo inteiro

Numa prisão.



Preciso a busca

Das estrelas diurnas

Saber dos rios

A palavra, meu elemento

Onde a extensão da carne?

O país da vida é navegar.



Apenas faculte-me o tempo

Percorrer descalça

A planície e o morro

E a montanha e

Ventos

Possa transportar o peso do mundo

Possa eu

Acrobata de sonhos

Transportar.



Cardumes e enxames

Festejarão as exéquias da tempestade

Cinza sobre cinza se erguerá a cidade.



No meio desse dia

Esparramado de luz

Que o planalto é pleno de claridade

A cal brota da terra

E os anseios se levantam

É o que descende

As farpas duras

Do que transpõe e parte.



As cigarras zunindo entre as abelhas

Começo de primavera

De novo as alfaces, as begônias

Os canteiros de couve.







Entranhas da terra

A superfície é ampla

E estamos nos seus veios

Sua fundura dolorosa

Catre para o repouso do dia

Nosso escurecido dia

Que não suportamos

A existência do amor

Que nos reparte.



Tardios medievais

Apelo eco

Onde semeamos

Semi-próximos, partidos

A resposta?

Seja ameno

Diga o nome redescoberto

O nome do homem

Neste deserto.



Fecho meus olhos

Pra lhe entregar

As suas catedrais

O parlamento

O tribunal

Sua arena diária

Sua contenda

Que sou ave apenas

Talvez anêmona.



Passarei no crepúsculo

Sob olhares, avisos

Passarei entre as águas

Selo íncubo

Invisível registro

Passarei.



Estou ao lado de mim

Jaz ao meu lado

Posto de lado um outro lado

Mesmo assim

Ainda parte

Esta parte que empurra

Um lado fica

E outro re-parte.



O que sou é isto que passa

Na liturgia de hábitos

E tanto se repete

Que se mistura

Às mudanças que faço.



Nessa hora nasci.

Já o espanto e alegria

Repousavam nas vésperas

O que me retinha era agora

Ausência

Recaminhar a procissão dos ventos

Fazer da trilha

Um infindável séquito.

Esta a invenção dos incertos

Transformar os enganos

Em ventura em descoberta.





O céu era azul do lado de fora

Se futuro é hoje

Não vivo aqui

E agora?



A morte é hai-kai\sintética.



Todo dia a mesma tensão

A retensão

A corda se esticando

No ar, em vão.



Segura minha mão Walt Whitman

A boca se escancara

Engolindo a minha hora

É meio dia.



Pensei uma lucidez de morte

E Mishima, o poeta

Queria me abrir a porta

Me levar a passear entre espadas

Fazendo kendô.



Tento organizar:

O que não tem começo Fim não terá?

O rio vazio se abre

Formando a cratera.





Antígona

Deita-se no divã do analista/

Meu problema é com a realidade

Morte é coisa da vida.







Este é meu poema

Deita-se comigo porque é livre

E não me teme.







Como uma estrela de metal

As suas idéias liberais

Em epicenos, comum de dois

Um a menos

Cada vez menos

O sujeito coletivo

Invadiu seu baobá

No concílio epidérmico

Das nossas consciências –

Foi criado um novo centro.







O espaço devorou a metáfora

Na indizível rotina do seu enigma

Em alabastro

Pétreo seu rosto

Que se transforma

Sem nenhuma noticia

Sem embargo

Sem embaraço.

Sua imagem cresce e

Minha mão não alcança

O ciclope gigante

Brincando na minha casa de vidro.



Estão nos olhando da calçada

E vamos passando

Feito uma paisagem de verduras

Nossos apetites em pratos.

Pensamento jeans

Em cada esquina

Os mesmos rostos

Com as suas bocas

Hálitos de hortelã

Todos absorvidos em delavée

Nossos jeans

Azuis nossos cabelos

As estrelas despedaçadas

Nos brilhos artificiais

Dos holofotes ensurdecedores

Nosso amor pop

Tão alegre numa pista de rock.

Nos seus óculos super escuros

Pousei

As minhas defesas

As resistências, as incertezas.



Só você não via

Tão acostumado

Aos grandes espaços

Ao que erige

Rasga e passa.



Seus óculos escuros

Como um elmo

Cobrindo sua cabeça

Tornando-me oculta

Sem minhas roupas

Amigos de infância

Meu diploma de bacharel.





Às vezes penso

Que você se diverte

Prisioneiro de si mesmo

Dentro da solidão que criou e

Traz zeloso

No seu fôlego arbitrário

Na imunidade

Da sua redoma de títulos

Cifrões e números.

Impossível marcar um encontro

O mundo está tomando conta de você

Pedindo bis.



Seus telefones em comunicação

E as palavras ocultas

Inanimadas

Nas suas mãos

Que não se movem.

Apenas fumaça

O seu riso

Apenas fumaça

O seu beijo de chocolate.





Que estou entrando

E você nunca está

Porque foi buscar o tesouro

No mar

E nem segurou a minha mão

Fria e que suava

Na maçaneta da porta..



Tudo em trânsito.

Engarrafado o seu ar

O seu perfume

A sua roupa com monograma do lado de fora

Do seu corpo

Incorpóreo

Impalpável/fogo fátuo.

E está no código

Adulterado

Não há verdade

Que ela está mudando

E eu

Assistindo tudo

Da minha poltrona.



Hóspede

Da minha jornada

Aceno efêmero e vago

No meu aquário

O tempo pesa

Em nossos atos

O que foi morto

Continua conosco:

Nosso fardo

Nossa roupa

Nosso cargo.





O meu coração é kitsch.

Você escolheu o fundo

Eu vou pro mundo.



Mais do que a paixão –

O seu motivo

A necessidade da sua invenção.







Passargada é um corredor aéreo

Inviolável

Preso de luzes e

Paredes de asas.

Passargada

Tem horário imprevisível

Ilimitado

É um tempo sentido

Que nele não vive

Nem acaba.





Assim toquei seu rosto

Verbena colhida do orvalho

Seu pulso

Batendo no meu peito

A sua mão penetrando minha carne.



O sol de maio

Estampava de risos nossos olhares.





Toma-me a mim

Que sou vento

Irreconhecível o meu nome

Entre abismos, moinhos.



Toma-me assim

Que vento

Também é caminho.

Recorda-me rio

Sobre seu corpo/leito

Entre suor e gozo

Aragem

Aberta e viva

No seu corpo Iaco

Rio de enchentes

Onde as pedras não se formam

E é de barro

A correnteza de larvas

O caminho das acácias

O silêncio das aves

O relento.



Eu vi a tarde caindo

Dentro dos seus olhos

Como se fosse o mundo.





Acordei com fios dos seus cabelos

Entre meus dentes

Eram de flores seus olhares

Pela fresta da janela



No meu carro

Uma incrustação de ácido

Confundia as marchas

Dividindo os caminhos.





As paralelas irreverentes

Se encontram em marte

Em domingos nublados

Nas estações boreais.





Trazemos uma flor

Clandestina e sem rumo.

Ao vento nossa mágoa.

Ao vento a ternura sem estio

A palavra que se encerra

Noutra palavra.



Novas manhãs para o sol.

Para o sol

Nosso corpo de espuma

E espera nenhuma.



Você ria sob as folhas

De uma árvores opulenta

Cingido e purificado

Do sol e das águas

Entre as frutas

As primícias de dezembro

Seu corpo cansado se entregava

À longa viagem desse caminho

Eu descobria sua pele de magnólia no lençol

E arrancava do seu peito

O pássaro em exílio.

Inesperada eteriza-me

E eu lhe ofereci outro corpo/beba.

O antídoto da solidão

Se escarna sobre a cama.



Em sua homenagem

Uma borboleta brincava nos meus olhos

Você não sabia

Da agitação de asas

Desse momento raro

De transformação das crisálidas.



Se for tarde

Coloco um cravo na sua/minha mão

E beijo seu braço

E cabelos

A estrela pousada no seu peito.



Preciso achar a palavra

Entro

Entre meias portas

Entremeios

Sem ser anunciada

Nas sobras insondáveis

Da minha/sua vida

Que nos acumulou desses vazios.



Seguro suas mãos enormes

E seus braços

Que crescem envolvendo

Meu sangue

Meu vestido

O bloco de papel com meus poemas.

Sua pulseira de prata

Na minha boca

Brilhando o meu coração.

O licor de amêndoas

Toma seu coração de touro

Que avança

Sobre minhas partes descobertas

Como postas de um poema

A fome do seu corpo, o seu olhar de festa.



Existe ainda outra parte

Que não essa

Existe ainda outra parte

Secreta.





Real é ouvir Tom Jobim

Passarinhando o coração da gente

E voltar

Para o vento e a luz do dia

Inesgotável rever de auroras

Noutros olhos

E outro cenário

De tinta e fogo

Queimando nosso diário.











Estendo toda manhã

Meu varal de estrelas e saio.





Alguma alavanca de sangue

Corta a minha carne

E me levanta.



1986 -